21 de maio de 2007

Realidade e/ou Verdade Virtual

O director de fotografia de Zodiac, Harris Savides, declarou à American Cinematographer: "Part of the approach on Zodiac was to make it look mundane enough for people to accept that what they’re watching is the truth. We didn’t want to hype anything or design anything to be seductive."
E assim se lança mais uma acha para a fogueira das realidades: poderá um filme que é "fotografado" numa câmara digital (Thomson Viper FilmStream), que grava a imagem directamente em ficheiros informáticos num disco-rígido, dar ao espectador uma sensação de que o que estão a ver é verdade?
Ao visionar o filme, uma das características da imagem que salta à vista são as cenas a baixa luz sem o grão que normalmente se tem quando rodado em película. Por outro lado, em cenas de noite, em ruas escuras ou terrenos mais abandonados, o horizonte longíquo da cidade tem mais luz do que o que se passa em primeiro plano, o que é o contrário do que normalmente se captava em filme, pois os projectores que eram precisos para iluminar a cena e imprimir a imagem davam necessariamente mais leitura ao que estivesse em primeiro plano (apesar de que nos últimos anos películas mais rápidas e sensíveis já permitissem outro género de filmagem à noite, a baixa luz e quase sem grão). Mas há quem diga igualmente que gosta do grão da película, que adora particularmente o visual do 16mm transferido para 35 que aumenta substancialmente o tal grão. E há quem afirme que esse look é mais real, e que o digital é artificial.
Pessoalmente penso que a questão da realidade da imagem não está no seu suporte, mas no que é filmado. E por sua vez o que é filmado é por vezes mais real quanto mais artificial. Aliás, muitos dos efeitos especiais hoje em dia são usados não para encher o olho do espectador com os seus artifícios mas, escondendo-se, apagar os seus efeitos, e tornar mais real o que se vê na imagem.

Based on a True Lie


Neste semestre em que a reflexão sobre cinema e realidade tem sido omnipresente, vale a pena ver ou rever os dois filmes de Billy Ray (Shattered Glass e Breach) cineasta que, como realizador, parece ter uma propensão para o que eu chamaria de "histórias baseadas numa mentira real".
Em Shattered Glass, Ray conta-nos a história do jovem jornalista Stephen Glass que durante anos publicou dezenas de artigos inteiramente fabricados (ficcionados) com pessoas, empresas e acontecimentos fictícios, o que não deixa de ser interessante, pois é um movimento inverso mas semelhante ao que o cinema faz da realidade que por sua vez deveria ser o domínio do jornalismo (ou não).
Mais recentemente em Breach, baseado na investigação que levou à prisão de Robert Hanssen, agente do FBI que durante anos fez espionagem para a URSS e mais tarde Rússia (depois do colapso da União), a mentira é dulpa, pois o filme é contado do ponto de vista do jovem pseudo-estagiário Eric O'Neill, que é colocado a trabalhar com Hanssen, de forma a poder relatar todos os seus movimentos suspeitos aos superiores do FBI (na verdade, a mentira chega a ser tripla, pois numa primeira abordagem, a agente que contacta O'Neil também lhe esconde a verdade dos verdadeiros pretextos para a sua investigação).
Repare-se igualmente nas semelhanças dos dois protagonistas de ambos filmes. Ambos jovens ambiciosos e dispostos a mentir. E as fronteiras morais da mentira ficam ténues, quando a pequena mentira se multiplica e expande perante o exterior monstruoso que envolve o protagonista -- em Glass, os media, em Breach o mundo dos serviços secretos.
Billy Ray é um cineasta cuja carreira será interessante seguir, ficando a questão no ar se Ray irá se especializar neste cinema ficcional-do-real-da-mentira e, em caso afirmativo, qual será o próximo grande embuste Americano que irá retratar.

5 de maio de 2007

>Trabalho<

Escola Superior de Teatro e Cinema
ESTÉTICA
4º ano
Entrega: 5 de Junho de 2007

(Texto na caixa de mail do blog)
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1.

* Vernon, Florida (1982), de Errol Morris

Faça uma exposição pessoal sobre o modo de construção do filme, tendo em conta, em particular, as seguintes questões:
- a utilização de entrevistas/depoimentos
- a montagem (alternada) dessas entrevistas
- a construção de algum efeito de verdade a partir dessas entrevistas

Se quiser, pode estabelecer alguma comparação com outro(s) filme(s) que utilize(m) dispositivos com algumas semelhanças (ou contrastes).

2.

* “Estou no cinema. Assisto à projecção do filme. Assisto. Tal como a parteira que assiste a um parto e que, ao fazê-lo, assiste a parturiente, eu estou presente no filme segundo a modalidade dupla (e não obstante única) do ser-testemunha e do ser-ajudante: vejo e ajudo. Ao ver o filme eu ajudo-o a nascer, a viver, visto que é em mim que viverá e porque é feito para isso: para ser visto, isto é, para não existir senão perante o olhar. O filme é exibicionista, tal como o era o romance clássico do século XIX, com intriga e personagens, esse romance que o cinema imita (semiologicamente), prolonga (historicamente) e substitui (sociologicamente, uma vez que o escrito tomou actualmente outra via). ”

Christian Metz
(1975)

Comente de forma breve e sucinta estas palavras. Tenha em conta, em particular, o modo como nelas se insiste na singularidade da experiência de ser espectador. Se quiser, pode descrever essa experiência em contraponto com outras, não necessariamente do audiovisual (ver televisão, ler um livro, assistir a um concerto de música, etc.).

24 de abril de 2007

Dunas

Escreve Ian McEwan em jeito de nota final ao seu novo livro, Na Praia de Chesil (Gradiva), que comecei agora a ler: "As personagens deste romance são fictícias e não têm qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas. O hotel de Edward e Florence - a pouco mais de quilómetro e meio a sul de Abbotsbury, no Dorset, e situado numa elevação de um terreno por trás do parque de estacionamento da praia - não existe." O pequeno esclarecimento de McEwan é delicioso pois dá-se ao trabalho de situar com pormenor uma coisa que "não existe". Acredito que será nisto, em última análise, que consistirá não apenas a literatura como o cinema. Na fabricação de uma verdade que não existe - excepto num certo e determinado momento e numa região interior do leitor/ espectador. Um fingimento, como diria o poeta. Que pode ser verdadeiro na medida em que o sentimos como tal.

Obs. A fotografia diz respeito à praia de Chesil. A verdadeira. Que existe.

17 de abril de 2007

O desporto favorito dos italianos...

O próprio Nanni Moretti o disse, em pessoa, no passado dia 14, na apresentação do filme "O Caimão" no cinema Monumental, em Lisboa: "Este não é um filme político, é a história de um homem [o produtor, não o Berlusconi, claro] que não se deixa levar pelo desporto preferido dos italianos que é a victimização".
Interessante contudo analisar a forma como Moretti representa Berlusconi ao longo do filme: começa com um actor parecido com o original; a meio do segundo acto passa a ser apenas através de imagens de arquivo do próprio Berlusconi (e não volta a apresentar cenas com o actor); e por fim, é o próprio Moretti que o incarna. Uma progressão inédita e surpreendente em termos de escolhas e decisões de como representar uma figura real e actual num filme de ficção.

16 de abril de 2007

A regra e a excepção

3 de Abril, 6ª aula. O género documental abre, necessariamente, o espaço de reflexão — e também as interrogações — em torno da questão do realismo & verdade. Porquê? Porque o documentário é sempre um filme que parte desta constatação básica: já lá estava alguma coisa...
A démarche de Jean-Luc Godard integra essa questão, sistematicamente, obsessivamente, por vezes fazendo-nos ver que aquilo que já lá estava pode ser "apenas" uma imagem. Exemplo modelar entre todos: a curta-(curtíssima: 2 minutos)-metragem Je Vous Salue, Sarajevo (1993), toda ela construída sobre uma fotografia, obtida em Sarajevo, e a oposição entre a regra (a cultura) e a excepção (a arte).
O olhar de Errol Morris parte da constatação de que aquilo que já lá está passa também pelo que se diz sobre o que lá está. Vernon, Florida (1981) pode mesmo ser definido como o retrato de uma pequena cidade americana que nos chega, acima de tudo, pelas palavras de alguns dos seus habitantes: a tensão narrativa nasce do confronto entre a elaboração dessas mesmas palavras e, não poucas vezes, a irrisão daquilo que nos é mostrado, ou melhor, aquilo com que o cineasta se confronta. A verdade do filme está, talvez, na verdade dessa coabitação de um olhar que chega e dos lugares que o recebem, do cruzamento de uma interrogação que se formula e das palavras que, aparentemente, lhe respondem.

> Não haverá um pouco, só um pouco, de ficção em tudo isso?

* Je Vous Salue, Sarajevo (1993), de Jean-Luc Godard
* Vernon, Florida (1981), de Errol Morris

***
Para a cerimónia da 79ª edição dos Oscars da Academia de Hollywood (25 Fev.), Errol Morris realizou um pequeno filme (de pouco mais de 4 minutos) que vale a pena ver — é um exemplo de "entrevista/reportagem/documento" que integra, sem preconceitos, uma agilidade de montagem e uma alegria narrativa que temos tendência a associar apenas àquilo que chamamos ficção.

Realismo rosenbergiano

Stuart Rosenberg faleceu no passado mês de Março antes de completar 80 anos. Da sua filmografia não rezam muitos dos livros que dizem respeito à história do cinema. A omissão justificar-se-á pela irregularidade do trabalho deste que foi no entanto um estimável profissional que teve no género "filme de prisão" talvez as duas únicas e discretas glórias. Rosenberg era o realizador de Cool Hand Luke, com Paul Newman - o seu filme até ao presente mais celebrado, basta recordar o cartaz do mesmo que viamos no quarto Monty Brogan, protagonista dessa obra-prima que dá pelo nome de 25th Hour -, e cerca de duas décadas mais tarde de Brubaker (1980), com Robert Redford. É sobre este último que gostava de referir o notável trabalho de direcção artística de J. Michael Riva (que se note, neto de Marlene Dietrich), responsável pela construção do cenário da prisão de Wakefield onde tem lugar quase toda a acção: o trabalho de Riva terá impressionado de tal modo Redford, que este o chamou em seguida para trabalhar no seu primeiro filme que viria a dirigir nesse mesmo ano, o belíssimo melodrama de câmara Ordinary People. Brubaker baseia-se em acontecimentos reais e fala-nos das condições desumanas e da mais vergonhosa corrupção praticada numa prisão algures no sul dos Estados Unidos, onde se reproduziam modelos que apenas podemos chamar de escravatura. Brubaker não é obra totalmente lograda na medida em que uma vez esclarecida a identidade daquele que se revela ser o novo director prisional, Brubaker (Robert Redford), o filme vai perdendo intensidade dramática - apesar da notável direcção de óptimos actores (Morgan Freeman anda por lá e "como" se faz notar!) - no decorrer da cruzada deste que se revela (hoje?) algo previsível. O filme de Rosenberg é talvez num sentido mais abrangente uma obra de temática social (até algo utópica) que depois gere os conflitos que estabelece com puerilidade e desenbaraço mais característicos da série B. Mas tem, recorde-se, um conjunto de décors fortíssimos - valorizados pela fotografia do francês Bruno Nuytten - que nos projectam no interior da prisão de Wakefield e arredores, e nos mantêm em alerta constante face às atrocidades verificadas. O cinema pode até ser de segunda, mas a carpintaria é definitivamente de primeira.

Follow the camera

Onde colocar a câmara? Três respostas de Orson Welles:

The Lady from Shanghai /A Dama de Xangai (1947)

Touch of Evil / A Sede do Mal (1958)

Chimes at Midnight /As Badaladas da Meia-Noite (1965)

15 de abril de 2007

Follow me

The Steadicam (a hand-held camera), like many another technological miracle, has done injury; it has injured American movies, because it makes it so easy to follow the protagonist around, one no longer has to think, “what is the shot?” or “where should I put the camera?

David Mamet - "Storytelling"
in On Directing Film

11 de abril de 2007

4' 43"


No filme Last Days (2005), de Gus Van Sant, há um momento particularmente esclarecedor da inesperada e fascinante dicotomia que a relação verdade/artifício pode implicar. A certa altura, vai o filme em 45 minutos e 25 segundos, inicia-se um plano sobre uma janela da casa onde está a viver Blake (Michael Pitt). A câmara começa a deslocar-se lentamente para trás, perpendi-cularmente à parede. Blake está no interior a experimentar alguns instrumentos, primeiro as guitarras eléctricas, depois uma bateria. Temos a noção da sua actividade pelas deslocações e movimentos da sua figura, mas também pelos sons que vai acumulando e constroem uma espécie de canção improvisada — a câmara filma em continuidade, aumentando a distância em relação à origem dos sons que, em todo o caso, vão também aumentando de intensidade e complexidade. O plano termina quando o filme chega aos 50 minutos e 8 segundos.

Em boa verdade, aquilo que acontece é algo de eminentemente — e, apetece dizer: exclusivamente — cinematográfico: assistimos a uma pura duração (4 minutos e 43 segundos), quer dizer, a um tempo linear que se reproduz como tal na aliança vital da imagem e do som, da banda-imagem e da banda-som. O cinema é, então, em sentido físico e metafísico, uma ocupação do tempo. E o tempo, provavelmente, é sempre verdade.