23 de março de 2007

Um estremecimento interior

Na última aula andámos todos em busca da "verdade" nos filmes. Falou-se de verosimilhança, de representação, de transcrição. As imagens chegaram por via do cinema de Cassavetes e de Jerry Lewis. Fixo-me no primeiro exemplo que é o que me interessa. Os primeiros 15/ 20 minutos de Minnie and Moscowitz (editado recentemente em Portugal com o título Tempo de Amar). Em concreto, a cena no interior do avião com a criança que se recusa a comer. A dado momento, perante a insistência e o desespero da mãe, a criança desvia o olhar e denuncia a presença da câmara. Quebra de "verdade"? Na minha opinião, absolutamente o contrário. O instante em que o olhar da criança dá de frente com a câmara de filmar, é o que de mais verdadeiro existe na cena. A criança deixa de ser personagem por menos de um segundo e eu vejo um actor que se debate com uma técnica que não domina por inteiro. Vejo uma pessoa inserida numa lógica de improvisação cujo pequeno deslize me diz: no cinema é tudo representação. Se tudo é representação, então onde está a tal "verdade" que procurávamos?
Preciso de saltar para outro exemplo não visto nas aulas. Falo de Bad Lieutenant de Abel Ferrara e da cena em que o polícia molesta verbal e sexualmente duas raparigas que se encontram no interior de uma viatura que ele manda encostar. Depois de as ameaçar com o pai de uma delas, com a ida à esquadra, com as consequências de se encontrarem a conduzir sem carta, o LT interpretado por Harvey Keitel pede a uma das raparigas que lhe mostre as nádegas e à outra que simule uma felação enquanto o polícia se masturba. Aquilo que me leva a afirmar que a "verdade" do cinema se encontra, por exemplo, numa cena como esta e num filme como Bad Lieutenant é o facto de o mesmo me fazer sentir uma espécie de estremecimento interior de cada vez que o vejo.
O efeito não se alterou pelo facto de eu ter vindo a saber muito mais sobre a produção deste filme do que na ocasião em que o vi pela primeira vez. Sei do enorme envolvimento de Harvey Keitel no projecto, a pontos de Ferrara lhe propor a co-autoria do argumento. Sei também que Keitel terminara por essa altura a sua relação com a actriz Lorraine Bracco e que se ligara até às últimas consequências ao trajecto de abjecção e redenção do seu personagem. Sei ainda que a sua enorme crença nos méritos da improvisação levava a que não houvessem duas takes "iguais". Quando observamos Keitel a snifar, é cocaína que ele snifa; quando o vemos injectar heroína, é heroína que tanto ele como Zoë Lund (a argumentista de Bad Lieutenant junto com Ferrara) injectam; quando o vemos beber, ele dirige-se destravadamente para a embriaguez; quando se masturba em frente às raparigas, ele masturba-se (e uma delas, tal como a criança do filme de Cassavetes, mostra um olhar - aqui, incrédulo - para a câmara que denuncia a representação que observamos, transmitindo um cunho suplementar de "verdade" a toda a cena).
A "verdade" no cinema não implica necessariamente um envolvimento até às mais sórdidas evidências naquilo que se vai filmar. Há por aí muito cinema que se diz vérite que não transcende o mais rasteiro exibicionismo. A "verdade" só existe (pelo menos para mim) quando dentro de nós tem lugar um qualquer estremecimento. Que nos pode chegar por diversos lados. Por via moral ou estética. Por associação livre de sensações, memórias ou ideias. Por um instante revelador de um sentido extraordinário. Pela expressão, no filme, de qualquer coisa que escondíamos dos outros ou que desconhecíamos em nós próprios. O estremecimento interior é algo que nos expõe até mesmo no interior de uma sala muito escura. É talvez uma espécie de solidão que não queremos partilhar com ninguém. Que nos faz temer o regresso a algo que nos fez mal. Que nos faz ter medo da atracção por algo que nos pode vir a acontecer. A "verdade" no cinema é aquilo que talvez só os filmes (ao contrário do espectador de cinema) poderão levar até à derradeira explicitude. De uma coisa apenas estou certo. Há muitos caminhos para atingirmos a "verdade" nos filmes. Tantos quantos os que levam a que sejamos por ela atingidos. Todos eles são pessoais, secretos, misteriosos. Partilháveis mas só em parte.