31 de março de 2007

"Welcome to the real world"

Espantosa imagem de The Matrix (1999), confrontando-nos com uma realidade que se expõe na sua própria perdição. Quem está a olhar? Qual o nosso ponto de fuga? Qual o ecrã cuja acção seguimos?
Rever o trailer do filme pode ter algo de pedagógico. Nele se sistematizam, afinal, as três questões que nos perseguem:
1. Onde está o real?
2. O que é a verdade?
3. O que é uma relação (com uma imagem, com um nosso semelhante)?

Artifícios realistas

IRVING PENN
Salad Ingredients
New York, 1947

FRAGMENTOS (Wachowski + Wachowski)

1999, "The Matrix"

30 de março de 2007

"Casting Newman..." segundo Kael

No texto que vem após a introdução e que dá início à "bíblia" da análise de filmes que é For Keeps..., de Pauline Kael (1919-2001), a autora que foi das vozes mais influentes na consagração de algum cinema europeu na América e de algum cinema norte-americano dentro e fora de portas, refere-se a Hud (O Mais Selvagem Entre Mil), de Martin Ritt, um dos títulos importantes de 1963 (recebeu três Óscares para actores secundários e direcção de fotografia), detendo-se em questões de verosimilhança do casting (em particular da escolha de Paul Newman para a figura do rebelde cínico e misógino Hud Bannon) e também do labor realista sobre o universo ficcionado que Kael conhecia particularmente bem. O texto completo é longo - cerca de 10 páginas de densa mancha gráfica - e saiu originalmente no número de Verão de 1964 da revista Film Quarterly. Vale a pena ler, no mínimo, os parágrafos que escolhi (não encontrei o texto na internet...). Kael mantém-se uma referência incontornável pela enorme bagagem cultural, pela qualidade do raciocínio e da escrita, e ainda pelo modo como deixou transparecer o facto de a sua história pessoal condicionar em parte a análise dos filmes, que considerava ser "o melhor trabalho do mundo".

«Somehow it all reminds me of the apocryphal story conference – “It’s a modern western, see, with this hell-raising, pleasure loving man who doesn’t respect any of the virtues, and, at the end, we’ll fool them, he doesn’t get the girl and doesn’t change!”
“But who’ll want to see that?”
“Oh, that’s all fixed – we’ve got Paul Newman for the part.”
They could cast him as a mean man and know that the audience would never believe in his meanness. For there are certain actors who have such extraordinary audience rapport that the audience does not believe in their villainy except to relish it, as with Brando; and there are others, like Newman, who in addiction to this rapport, project such a traditional heroic francness and swetness that the audience dotes on them, seeks to protect them from harm or pain. Casting Newman as a mean materialistic is like writing a manifesto against the banking system while juggling your investments so you can break the bank. Hud’s shouted last remark, his poor credo, “The world’s so full of crap a man’s going to get into it sooner or later, whether his careful or not,” has, at least, the ring of his truth. The generalized pious principles of the good old codger belong to no body.
(…)
The setting, however, wasn’t melodramatic, it was comic – not the legendary west of myth-making movies like the sluggish Shane but the modern West I grew up in, the ludicrous real West. The comedy was in the realism: the incongruities of Cadillacs and cattle, crickets and transistor radios, jukeboxes, Dr Pepper signs, paperback books – all emphasizing the standardization of culture in the loneliness of vast spaces. My West wasn’t Texas; it was northern California, but our Sonoma County ranch was very much like this one – with the frame house, and the “couple’s” cabin like the housekeeper’s cabin, and the hired hands’ bunkhouse, and my father and older brothers charging over dirt roads, not in Cadillacs but in Studebakers, and the Saturday nights in the dead little town with its movie house and ice cream parlor. This was the small-town West I and so many of my friends came out of – escaping from the swaggering small-town hotshots like Hud. But I didn’t remember any boys like Brandon de Wilde’s Lon: he wasn’t born in the West or in anybody’s imagination; that seventeen-year-old blank sheet of paper has been handed down from generations of lazy hack writers. His only “reality” is from Wilde’s having played the part before: from Shane to Hud, he has been our observer, our boy in the West, testing heroes. But in Hud, he can’t fill even this cardboard role of representing the spectator because Newman’s Hud has himself come to represent the audience.»

[Hud, Deep in the Divided Heart of Hollywood, Pauline Kael, For Keeps – 30 years at the Movies (Dutton, 1994), págs. 4 e 6]

29 de março de 2007

O contexto é tudo

27 de Março, 5ª aula. Eis uma equação possível para definirmos a dinâmica do cinema face ao real (questões pendentes: que é o real? que é estar "face" ao real?):

REALISMO
(querer mostrar as coisas "como elas são")
<>
VEROSIMILHANÇA
(mostrar de modo a suscitar alguma crença
naquilo que se mostra)
<>
CONTEXTO
(aquilo que sustenta a verosimilhança
e pode favorecer alguma forma de realismo)
<>
PRODUÇÃO DE UMA NOVA REALIDADE
(NARRATIVA)


*

Quando vemos os Pet Shop Boys no teledisco de Go West (real.: Howard Greenhalg, 1993), compreendemos que a tecnologia digital favorece novos arranjos das próprias representações que construímos: as suas personagens artificiais e artificiosas movem-se num mundo virtual em que, por exemplo, os símbolos do Ocidente (Estátua da Liberdade) e do Leste (a iconografia soviética) podem coexistir em nome do próprio espectáculo. Quando os vemos a caminhar na Praça Vermelha, em Moscovo, temos uma estranha prova de verdade: as personagens "falsas" estão num lugar verdadeiro, desse modo confirmando a sua própria e peculiar verdade.

*
PopArt - The Videos (2003), dos Pet Shop Boys
*
Personal Velocity (2002), de Rebecca Miller

"Drink liquid clocks"

Time Code (teledisco)
Bright Eyes
Álbum: Digital Ash in a Digital Urn (2005)
Real.: Justin Metcalfe

FRAGMENTOS (Figgis, Mike)

2000, "Timecode"

Barthes: colar o nariz ao écran

"A imagem fílmica (incluindo o
som), o que é? Um logro. É preciso entender esta palavra no sentido analítico. Estou fechado com a imagem como se estivesse apanhado na famosa relação dual que funda o Imaginário. A imagem está ali, diante de mim, para mim: coalescente (significante e significado bem fundidos), analógica, global, prenhe; é um logro perfeito: precipito-me para ela como um animal para o pedaço de trapo 'verosímil' que lhe estendem; e, é claro, ela sustenta no sujeito que creio ser o desconhecimento ligado ao Ego e ao Imaginário. Na sala de cinema, por muito longe que eu esteja situado, colo o nariz, até o esmagar, ao espelho do écran, a esse 'outro' imaginário com que me identifico narcisicamente (diz-se que os espectadores que escolhem colocar-se o mais perto possível do écran são as crianças e os cinéfilos); a imagem cativa-me, captura-me: colo à representação, e é esta cola que funda a naturalidade (a pseudo-natureza) da cena filmada (cola preparada com todos os ingredientes da 'técnica'); o Real, esse, só conhece distâncias, o Simbólico só conhece máscaras; só a imagem (o imaginário) é próxima, só a imagem é 'verdadeira' (capaz de produzir a ressonância da verdade)." [extracto de Ao sair do cinema, texto de 1975]

Roland Barthes
in O Rumor da Língua (Edições 70, 1987)

PS - Quando esta tradução saíu, a grafia portuguesa de écran ainda era igual à francesa. Modernizámos a escrita ("ecrã"), perdemos o laço com a origem.

28 de março de 2007

1975: o velho e o novo

Facto 1 > A actual proliferação da tecnologia digital é um fenómeno essencial ao cinema do presente e, por certo, também ao cinema do futuro (ou à coisa que o futuro do cinema gerar).
Memória > É vital não esquecer a imensa, plural e paradoxal história da convivência dos profissionais de cinema (e televisão) com o digital. É importante, acima de tudo, não cair na ligeireza "jornalística" que reduz todas as novidades ao que aconteceu... nos últimos seis meses.
Facto 2 > Foi em 1975 — portanto, há mais de 30 anos — que Jean-Luc Godard começou a sua convivência, multifacetada e agressiva, com os recursos específicos do video, antepassado próximo daquilo que, agora, referimos sob a designação genérica de "digital". Aconteceu no filme Número Dois, depois de Tout Va Bien (1972) e Letter to Jane (1972).

*
Godard filmava o espaço íntimo de uma família, desnudando-o de qualquer passado melodramático e esvaziando-o de qualquer lógica moralista. O video, justamente, com a sua crueza prática e a qualidade "suja" das suas imagens, permitia-lhe colocar uma nova questão: para onde vai o cinema que já não é filmado, mas registado? Era uma questão (ainda actualíssima) que, em última instância, o levava a encenar-se dentro do filme numa solidão contida, acompanhado pelas suas máquinas, as velhas e as novas.
*
* 1975: crítica ao filme na revista Jump Cut.
* 1981: Numéro Deux no New York Times.

Vampiros, nosso semelhante


Na imagem de cima a actriz Zoe Lund no filme Bad Lieutenant, do qual foi também co-argumentista. Tem a expressão de quem se evade do mundo após ter injectado heroína no seu corpo. Misturada com o seu sangue. Momentos depois, completamente pedrada, dirá a LT (Harvey Keitel) que se encontra junto dela: "Vampires are lucky, they can feed on others. We gotta eat away at ourselves". Não foi a frase, mas podia ser, que me levou a propor para a próxima aula o visionamento de uma sequência por escolher de Trouble Every Day, da realizadora francesa Claire Denis (imagem de baixo), protagonizado por Béatrice Dalle e Vincent Gallo. Provavelmente o filme de vampiros mais realista que alguma vez vi. Que até hoje me assombra do mesmo modo que o fazem todos os filmes que permanecem connosco. Terá por vezes demasiado vermelho-sangue para que o seja: i.e., realista? Concedo. Por outro lado, nada mais reconhecível do que o que temos no corpo dentro das veias: com ou sem aditivos. E nada tão expressivo como o sangue para dar a ver a angústia que, nuns mais noutros menos, corrói a nossa existência. Para compreendermos talvez que a necessidade de consolo é (tão) impossível de satisfazer em nós (Stig Dagerman escreveu-o; é frase que vale todo um texto) como o será neles, vampiros, nossos semelhantes. Vamos ver. Assim o espero. A não ser que até lá alguém me morda no pescoço.

27 de março de 2007

FRAGMENTOS (Godard)

1988-1998, "Histoire(s) du Cinéma"

FRAGMENTOS (Welles)

1948, "The Lady from Shangai"

Realismo e narrativas fragmentadas

"L'Année Dernière à Marienbad" (1961), de Alains Resnais

"[...] Straightforward chronology driven by cross-cutting among parallel actions, a technique that was invented by D. W. Griffith almost a hundred years ago. It still may be the best way of leading us to the paradise of a morally complicated but flawlessly told story."

Assim termina o artigo The New Disorder de David Denby na revista The New Yorker de 5 de Março 2007 onde se reflecte sobre a narrativa fragmentada no cinema, mais concretamente o mais recente movimento de fragmentação iniciado com o Pulp Fiction de Quentin Tarantino (apesar de Denby prestar a devida a homenagem a anteriores fragmentadores de Resnais a Harold Pinter) aos dias de hoje, mais em moda do que nunca, com o recente Babel da dupla Arriaga e Iñárritu. As questões que se levantam acabam todas no mesmo tema que aqui tratamos: onde está a verdade? Pela leitura da frase final que citei em cima, poder-se-á antever a moral da história do artigo, mas a análise crítica que Denby exercita neste texto poderá ser um ponto de partida para mais discussão e reflexão.

24 de março de 2007

Reproduzir / representar

GOTTFRIED HELNWEIN
American Madonna (Epiphany IV), 2000
(177 cm x 213 cm)
Óleo e acrílico sobre tela

Elogio do contexto

Um filme é uma relação — de um olhar com um objecto, de muitos olhares com muitos objectos. Por isso mesmo, um filme remete sempre para um lugar e um tempo, isto é, um contexto. Jean-Luc Godard, por exemplo: em 1972, por altura da estreia de Tout Va Bien, ele analisava assim o conceito de "filme político", ou melhor, os modos de fazer política filmando. Para além da ganga ideológica da época (mas também através dela), eis um testemunho exemplar de quem pensa as relações que os filmes estabelecem e, no fundo, as relações que os filmes são.

23 de março de 2007

Um estremecimento interior

Na última aula andámos todos em busca da "verdade" nos filmes. Falou-se de verosimilhança, de representação, de transcrição. As imagens chegaram por via do cinema de Cassavetes e de Jerry Lewis. Fixo-me no primeiro exemplo que é o que me interessa. Os primeiros 15/ 20 minutos de Minnie and Moscowitz (editado recentemente em Portugal com o título Tempo de Amar). Em concreto, a cena no interior do avião com a criança que se recusa a comer. A dado momento, perante a insistência e o desespero da mãe, a criança desvia o olhar e denuncia a presença da câmara. Quebra de "verdade"? Na minha opinião, absolutamente o contrário. O instante em que o olhar da criança dá de frente com a câmara de filmar, é o que de mais verdadeiro existe na cena. A criança deixa de ser personagem por menos de um segundo e eu vejo um actor que se debate com uma técnica que não domina por inteiro. Vejo uma pessoa inserida numa lógica de improvisação cujo pequeno deslize me diz: no cinema é tudo representação. Se tudo é representação, então onde está a tal "verdade" que procurávamos?
Preciso de saltar para outro exemplo não visto nas aulas. Falo de Bad Lieutenant de Abel Ferrara e da cena em que o polícia molesta verbal e sexualmente duas raparigas que se encontram no interior de uma viatura que ele manda encostar. Depois de as ameaçar com o pai de uma delas, com a ida à esquadra, com as consequências de se encontrarem a conduzir sem carta, o LT interpretado por Harvey Keitel pede a uma das raparigas que lhe mostre as nádegas e à outra que simule uma felação enquanto o polícia se masturba. Aquilo que me leva a afirmar que a "verdade" do cinema se encontra, por exemplo, numa cena como esta e num filme como Bad Lieutenant é o facto de o mesmo me fazer sentir uma espécie de estremecimento interior de cada vez que o vejo.
O efeito não se alterou pelo facto de eu ter vindo a saber muito mais sobre a produção deste filme do que na ocasião em que o vi pela primeira vez. Sei do enorme envolvimento de Harvey Keitel no projecto, a pontos de Ferrara lhe propor a co-autoria do argumento. Sei também que Keitel terminara por essa altura a sua relação com a actriz Lorraine Bracco e que se ligara até às últimas consequências ao trajecto de abjecção e redenção do seu personagem. Sei ainda que a sua enorme crença nos méritos da improvisação levava a que não houvessem duas takes "iguais". Quando observamos Keitel a snifar, é cocaína que ele snifa; quando o vemos injectar heroína, é heroína que tanto ele como Zoë Lund (a argumentista de Bad Lieutenant junto com Ferrara) injectam; quando o vemos beber, ele dirige-se destravadamente para a embriaguez; quando se masturba em frente às raparigas, ele masturba-se (e uma delas, tal como a criança do filme de Cassavetes, mostra um olhar - aqui, incrédulo - para a câmara que denuncia a representação que observamos, transmitindo um cunho suplementar de "verdade" a toda a cena).
A "verdade" no cinema não implica necessariamente um envolvimento até às mais sórdidas evidências naquilo que se vai filmar. Há por aí muito cinema que se diz vérite que não transcende o mais rasteiro exibicionismo. A "verdade" só existe (pelo menos para mim) quando dentro de nós tem lugar um qualquer estremecimento. Que nos pode chegar por diversos lados. Por via moral ou estética. Por associação livre de sensações, memórias ou ideias. Por um instante revelador de um sentido extraordinário. Pela expressão, no filme, de qualquer coisa que escondíamos dos outros ou que desconhecíamos em nós próprios. O estremecimento interior é algo que nos expõe até mesmo no interior de uma sala muito escura. É talvez uma espécie de solidão que não queremos partilhar com ninguém. Que nos faz temer o regresso a algo que nos fez mal. Que nos faz ter medo da atracção por algo que nos pode vir a acontecer. A "verdade" no cinema é aquilo que talvez só os filmes (ao contrário do espectador de cinema) poderão levar até à derradeira explicitude. De uma coisa apenas estou certo. Há muitos caminhos para atingirmos a "verdade" nos filmes. Tantos quantos os que levam a que sejamos por ela atingidos. Todos eles são pessoais, secretos, misteriosos. Partilháveis mas só em parte.

22 de março de 2007

Próximo da verdade

20 de Março, 4ª aula. Ainda os cenários em corte. Ainda Godard, Jerry Lewis e... John Cassavetes (1929-1989). O contraponto de Cassavetes é tanto mais estimulante quanto, de facto, são três contemporâneos. No caso dos dois americanos, talvez possamos mesmo dizer que eles se aproximam através de uma insólita distância geográfica e cultural: Jerry é indissociável do entertainment da costa Oeste dos EUA, Los Angeles e Hollywood — a sua visão crítica do espectáculo não deixa der interior a esse mesmo espectáculo; Cassavetes é produto da costa Leste, e de um contexto eminentemente novaiorquino, como realizador desde o princípio (Shadows, 1959) ligado a uma aposta fundamental nas novas técnicas ligeiras (câmaras mais leves e som directo). Ver Gena Rowlands em Minnie and Moskowitz/Tempo de Amar (1971) é, assim, deparar com uma atitude criativa — e uma forma de ser actor/actriz — que acredita que o cinema está, pode estar, próximo de alguma verdade. Neste tempo de triunfo da retórica da reality TV, que significa estar próximo da verdade? E qual verdade?

21 de março de 2007

Técnica / tecnologia

* técnica1 conjunto de procedimentos ligados a uma arte ou ciência. 1.1 a parte material dessa arte ou ciência. 2 maneira de tratar detalhes técnicos (como faz um escritor) ou de usar os movimentos do corpo (como faz um bailarino)...

* tecnologia1 teoria geral e/ou estudo sistemático sobre técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da actividade humana (p.ex., indústria, ciência etc.). 2 técnica ou conjunto de técnicas de um domínio particular. 3 qualquer técnica moderna e complexa...

definições (extractos) do
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
(Temas e Debates, 2005)

20 de março de 2007

Formas & narrativas

16 de Março, 3ª aula. A história da técnica e a história das formas existem numa permanente interacção — transformações técnicas desencadeiam novas questões formais, experimentações formais fazem desejar novas técnicas.
Quando olhamos sucessivamente as imagens dos cenários (em corte) de The Ladies Man/O Homem das Mulheres (1961), de Jerry Lewis, e Tout Va Bien/Tudo Vai Bem (1972), de Jean-Luc Godard (que, na altura, com Jean-Pierre Gorin, formava o "Grupo Dziga Vertov"), deparamos com a duplicidade da técnica: instrumento de trabalho e gerador de formas & narrativas. Embora de modo diverso, em ambos os casos a exposição dos cenários não se faz "contra" o efeito de real mas, por assim dizer, à custa dele. Como se cada filme possuísse uma voz, desconcertante e fria, que diz ao espectador: "eu sei que tu estás aí..."

* The Ladies Man (1961), de Jerry Lewis
*
Tout Va Bien (1971), de Jean-Luc Godard

PS - 16 de Março de 2007: Jerry Lewis fez hoje 81 anos. Jean-Luc Godard nasceu a 3 de Dezembro de 1930.

19 de março de 2007

Técnicas & formas

Creio que se pode dizer que O Bom Alemão, de Steven Soderbergh, é um filme incrustado na técnica de outra época (a década de 1940, com os seus emblemáticos melodramas de guerra). Ou melhor: um filme que, embora partindo de um aparato técnico completamente diferente, nos remete para as memórias das formas do cinema clássico de Hollywood. E vale a pena sublinhar as diferenças técnicas que geram as "semelhanças" visuais: afinal de contas, as imagens de O Bom Alemão resultam de uma filmagem a cores em que o tratamento do laboratório de technicolor é essencial para chegar ao... preto e branco.
*
Sugestão: a leitura de um texto de Larry Gross — argumentista de We Don't Live Here Anymore/Desencontros (2004), de John Curran —, precisamente sobre o modo como algum cinema contemporâneo se apropria de matrizes clássicas para as repensar e, de alguma maneira, refazer através de novos recursos técnicos, em particular de natureza digital. O tema de Larry Gross é Zodiac, o novo filme de David Fincher (estreia portuguesa: 17 Maio).

16 de março de 2007

As coisas e as palavras

"Se o traço característico da nossa época é a confusão, distingo perfeitamente na raiz desta confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, entre as coisas e as ideias e os signos que as representam."

Antonin Artaud
in O Teatro e o Seu Duplo (Fenda, 2006)

Mondrian, 1920

PIET MONDRIAN
Composição em Vermelho, Negro, Azul, Amarelo e Cinzento, 1920

15 de março de 2007

Virose



No fundo, talvez que o Sr. Hulot seja apenas um vírus que circula sempre pelo caminho "errado"...

Redes

Tati/Hulot confronta-se com uma rede de trajectos e circuitos que observa, mas não compreende, muito menos domina. O burlesco nasce da sua permanente tentativa de adequação a tal labirinto. Dir-se-ia que ainda há realismo, mas já não se sabe o que é o real...

Talvez se possa dizer que a cidade "transparente" que Tati observa/inventa/filma antecipa a multiplicidade de ligações contemporâneas, de computador para computador — a Internet, enfim. Até mesmo um computador da NASA se pode parecer com os interiores de Tati.

Como poderá ser um mundo "aberto", de circuitos "francos" que, por assim dizer, se sustentam apenas pela possibilidade de... se formarem? Na revista Wired, por exemplo, há quem pense essa hipótese.

13 de março de 2007

Onde está o homem?

6 de Março, 2ª aula. Jacques Tati é um caso extremo — e, ao mesmo tempo, irónico, quase dançante — de entendimento das relações do homem com a técnica e da técnica com as formas (e não é verdade que, quando chegamos às formas, reencontramos o humano?). Quando fez Playtime (1967), o seu sistema expressivo tinha chegado, por assim dizer, ao cume da sua própria lógica. Se o filme anterior, O Meu Tio (1958), era uma espécie de requiem ainda risonho, mas já secretamente desencantado, por uma França "familiar", tocada pelas primeiras convulsões da sociedade de consumo, Playtime decorre do triunfo pleno dos valores dessa mesma sociedade.
Tati constitui o exemplo modelar de uma visão verdadeiramente política da técnica: com ele, não há técnica abstracta ou neutra; se rasparmos a superfície das coisas, encontramos sempre o homem. De forma talvez sugestiva, podemos considerar que, nos seus filmes (e muito em particular em Playtime), há sempre humanidade, mas começa a faltar a crença humanista.
Por vias distantes, mas estranhamente cúmplices, o cinema de Alfred Hitchcock durante as décadas de 1960/70 dizia algo de semelhante. E com um défice simbólico que, em Hitchcock, está longe de ser banal: já não havia stars, à maneira clássica, e sobravam homens banais, porventura medíocres, relações superficiais e mercantis — nenhum romantismo. Ou ainda: o humano estava a adquirir os contornos de uma rotina sem transcendência. De alguma maneira, Frenzy/Perigo na Noite (1972) é a bizarra e perturbante apoteose dessa decomposição: identificamo-nos com o criminoso porque, de facto, já não havendo verdadeiros heróis, só não podemos abdicar do prazer de sermos espectadores.

* Playtime (1967), de Jacques Tati

10 de março de 2007

Família

Sigmund Freud — avô de Lucian —, com a sua mãe, Amalia.
Viena, 5 de Maio de 1926

O factor humano

No filme de Jake Auerbach, Lucian Freud - Portraits (2004), altera-se a tradicional distribuição de papéis nos documentários sobre "arte & artistas". Para todos os efeitos, temos um tema/personagem: Freud. E uma colecção de testemunhos/pessoas: os que pousaram para os seus quadros. Logo aqui se introduz uma componente pouco comum: os entrevistados não são apenas pessoas que "conhecem" o pintor, mas também temas da sua pintura. Daí um efeito óbvio, mas recheado de subtilezas: os que falam dele são, por assim dizer, compelidos a reconhecer que o vêem também através da forma como ele os viu/pintou. Há aqui, afinal, uma moral pouco popular: vemo-nos sempre com os nossos olhos, mas também através dos olhos dos outros. Neste universo, o humano não é um dado adquirido, mas sim algo que nasce da possibilidade de estabelecer, programar ou pensar uma relação. Será isso uma certa forma de realismo? Um realismo social? Ou das relações sociais?

PS - E não será isso uma ética da arte? Ou um entendimento da arte como modelo ético?

Realismo(s)

De que falamos quando falamos de realismo? A questão é tanto mais pertinente quanto vogamos num espaço/tempo de simulações e simulacros — a ponto de entendermos o espaço apenas em função dos circuitos que podem ligar as suas partes; a ponto de medirmos o tempo como uma mera variante do contra-relógio repetitivo a que, globalmente, todas as televisões obedecem.
*
A instauração de uma noção plural de realismo talvez seja pedagogicamente útil. Ajuda-nos, pelo menos, a separar as águas, respeitando os olhares: o "meu" realismo não coincide, necessariamente, com o "teu" realismo. Ou ainda: nenhuma visão é automática ou legitimada pelo real. Aliás, em parte, o real existe através da sua representação (esta é a filosofia mais amarga, e também mais vital: no limite, o real não é aquilo que conhecemos, mas aquilo que se escapa um pouco mais face a qualquer tarefa de conhecimento).
*
Que fazer, então, com o realismo, aliás, os realismos? Talvez começar por dizer que o simples reconhecimento da sua possibilidade nos coloca contra o naturalismo televisivo e o império cognitivo da telenovela.

7 de março de 2007

Desejo de realismo

LUCIAN FREUD, Large Interior W. 11 (after Watteau), 1981-1983

27 Fevereiro, 1ª aula. Falar de técnica e falar de formas — da técnica como forma que nasce, da forma como acontecimento interior à técnica. E tentar compreender como é que isso nos aproxima ou afasta do real (o que é o real?). Tentar lidar com o desejo de tocar o real, isto é, o realismo. Ou melhor: os realismos. Plural. Começar com Lucian Freud, porque...sim.